sábado, 2 de maio de 2009

A Identidade

Muito tempo sem postar, muitas novidades a contar, pensamentos a colocar em palavras, mas não agora. Essa semana ainda, prometo (dessa vez vou tentar cumprir... ;D)


Fragmentos de A Identidade, de Milan Kundera


“... Jean-Marc se lembrou de sua velha teoria: existem três categorias de tédio: o tédio passivo: a garota que dança e boceja; o tédio ativo: aqueles que gostam de soltar papagaio; e o tédio em revolta: a juventude que queima carros e quebra vitrines.”


“Por mais que dissesse que a amava e a achava bela, seu olhar amoroso não podia consolá-la. Porque o olhar do amor é o olhar do isolamento. Jean-Marc pensava na solidão amorosa de dois seres velhos que se tornaram invisíveis para os outros: triste solidão que prefigura a morte.”


“O que sempre desejei, desde a adolescência, desde a infância talvez, foi outra coisa: a amizade como valor elevado acima de todos os outros. Gostava de dizer: entre a verdade e o amigo, escolho sempre o amigo. Dizia para provocar, mas acreditava seriamente nisso. Hoje sei que essa máxima está superada. Podia ser válida para Aquiles, amigo de Pátroclo, para os mosqueteiros de Alexandre Dumas, até mesmo para Sancho, que era um amigo verdadeiro de seu amo, apesar de todas as suas desavenças. Mas para nós ela não vale mais. Vou tão longe no meu pessimismo que hoje estou pronto a preferir a verdade à amizade.

...

A amizade para mim era a prova de que existe alguma coisa mais forte do que a ideologia, do que a religião, do que a nação. No romance de Dumas, os quatro amigos se encontram muitas vezes em campos opostos, obrigados a lutar uns contra os outros. Mas isso não altera a amizade deles. Não deixam de se ajudar, em segredo, disfarçadamente, pouco ligando para a verdade de seus respectivos campos. Puseram sua amizade acima da verdade, da causa, das ordens superiores, acima do rei, da rainha, acima de tudo.”


“...imaginava a vida diante de mim como uma árvore. Chamava-a então de árvore das possibilidades. É só por um período curto que se vê a vida assim. Depois, ela aparece como uma estrada imposta de uma vez por todas, como um túnel do qual não se pode sair. No entanto, a antiga imagem da árvore permanece em nós sob a forma de uma indelével nostalgia.”


“ Você não pode medir a afeição recíproca de dois seres humanos pela quantidade de palavras que trocam. Simplesmente, a cabeça deles está vazia. Talvez até por delicadeza se recusem a falar, já que não têm nada a dizer. Ao contrário da minha tia de Périgord. Quando a encontro, ela fala sem parar. Tentei compreender o segredo de sua loquacidade. Acompanha com palavras tudo o que vê e tudo o que faz. Que acordou de manhã, que só tomou café preto, que em seguida seu marido saiu para passear, imagine, Jean-Marc, quando ele chegou, viu televisão, imagine! Mudou várias vezes de canal e depois, cansado de televisão, folheou uns livros. E assim, são palavras dela, o tempo passa para ele... Sabe, Chantal, gosto muito das frases simples, comuns, e que são a definição de um mistério. Essa ‘e assim o tempo passa para ele’ é uma frase fundamental. O problema deles é o tempo, fazer o tempo passar, passar por si mesmo, sozinho, sem esforço da parte deles, sem que sejam obrigados, como andarilhos exaustos, a atravessá-lo, e é por essa razão que ela fala, porque as palavras que ela diz fazem o tempo se mover discretamente, ao passo que, quando sua boca fica fechada, o tempo se imobiliza, sai da obscuridade, enorme, pesado, assusta minha pobre tia, que, apavorada, procura depressa alguém para contar que sua filha está preocupada com a diarréia do filho, pois é, Jean-Marc, diarréia, diarréia, ela consultou um médico, você não o conhece, ele mora perto de casa, nós o conhecemos há muito tempo, pois é, Jean-Marc, há muito tempo, esse médico até cuidou de mim, um inverno em que tive uma gripe, lembra, Jean-Marc, tive uma febre horrível...”


“Não é um fracasso desistir dos estudos, foi de ambições que desisti naquela época. De repente me tornei um homem sem ambições. E, tendo perdido minhas ambições, me vi na mesma hora à margem do mundo. E, pior ainda: não sentia nenhuma vontade de estar em outro lugar. Minha vontade ainda menor porque nenhuma miséria me ameaçava. Mas, se você não tem ambições, se não está ávido de sucesso, de ser reconhecido, você se instala à beira da queda. Eu me instalei, verdade que bem comodamente. Ainda assim foi à beira da queda que me instalei. Portanto, sem exagero, estou do lado daquele mendigo e não do lado do dono deste restaurante magnífico que tanto me agrada.”


“Chantal olhava para ele com deleite: ele falava não como um mestre mas como um provocador. É isso que Chantal gosta nele: esse tom seco de um homem que transforma tudo aquilo que diz em provocação, na tradição secreta dos revolucionários ou dos vanguardistas; ele nunca se esquece de ‘chocar o burguês’, mesmo quando diz as verdades mais convencionais. Aliás, as verdades mais provocadoras (‘morram os burgueses!’) não se tornam as verdades mais convencionais quando chegam ao poder? A convenção pode, a qualquer momento, tornar-se provocação, e a provocação, convenção. O que importa é a vontade de ir até o fim de qualquer atitude.”


“O essencial, na vida, é perpetuar a vida: é o parto, e aquilo que o precede, a sedução, isto é, os beijos, os cabelos soltos ao vento, as calcinhas, os sutiãs bem cortados, mais tudo o que torna as pessoas aptas para o coito, isto é, a comida, não a grande cozinha, essa coisa supérflua que ninguém mais aprecia, mas a comida que todo mundo compra, e com a comida a defecação, pois a senhora sabem, minha cara senhora, minha bela senhora adorada, a senhora sabe que lugar importante ocupa na nossa profissão o elogio do papel higiênico e das fraldas. Papel higiênico, fraldas, sabão em pó, comida. É o círculo sagrado do homem, e nossa missão não é apenas descobri-lo, apreendê-lo e delimitá-lo, mas torná-lo belo, transformá-lo em canto. Graças à nossa influência o papel higiênico é quase exclusivamente de cor de rosa e esse é um fato altamente edificante sobre o qual lhe recomendo, minha cara e ansiosa senhora, meditar bastante.”