sábado, 9 de maio de 2009

1984

(Ainda tô sem ânimo de postar um texto meu, mesmo...)

Outro dia eu fui devolver um livro na biblioteca pública, e pegar um de álgebra pra estudar. Só que na biblioteca pode pegar até 3 livros por vez. Então, eu pensei: "pego um de álgebra e dois pra eu ler. ok. mas qual???? um tem que ser do Kundera, mas e o outro???"
Putz, escolher um livro entre um milhão é complicado... Pelo menos para mim.
Enfim, comecei a passear pelas estantes observando o título e vendo se algum chamava a minha atenção. Aí eu vi a prateleira do Herman Hesse. Eu comecei a ler Sidarta, dele, este ano, mas não terminei. "ah, já sei, vou pegar O Lobo da Estepe". Peguei.
Então ia eu, toda feliz e contente, com os livros na mão, voltando pelos corredores para finalizar a locação destes. Mas....
De repente eu olho para o lado, distraída, e leio, escrito na vertical, 1984.
Pára tudo!!!!!! (Paula, quero a cola da nova regra gramatical, acho que este "pára" não tem mais acento, né??!?!?)
Eu TINHA que pegar este livro... Estava desde o ano passado querendo lê-lo, mas não ainda tinha tido a possibilidade... Conclusão: Hesse ficou para mais tarde.
;D

Fragmentos de 1984, de George Owell:


“Como fizera Syme antes, Winston tomou a colher e com o caldo se pôs a desenhar calungas sobre a mesa. Meditava, ressentido, na textura física da vida. Teria sido sempre assim? Teria a comida tido sempre o mesmo gosto? Olhou em torno da cantina. Um salão de teto baixo, paredes sujas do contacto de inúmeros corpos; maltratadas cadeiras e mesas de metal, tão juntinhas que os cotovelos se tocavam. Colheres arcadas, bandejas trincadas, rústicas xícaras brancas; gordurentas todas as superfícies, sujeira em cada frincha; e um cheiro azedo, composto de gim ordinário, café ruim, guisado metálico e roupa suja. Havia sempre, no estômago e na pele, uma espécie de protesto, a sensação de que se perdera, para um gatuno, algo a que se tinha direito. Era fato que não tinha recordação de nada muito diferente. Em todas as épocas que lembrava com precisão, nunca houvera suficiente para comer, nunca tivera meias ou roupa branca que não fossem esburacadas, mobília que não fosse capenga e gasta; e cômodos mal aquecidos, trens subterrâneos atulhados, casas caindo aos pedaços, pão escuro, chá raro, café nojento, cigarros insuficientes – nada barato e abundante, exceto gim sintético. E conquanto as coisas piorassem com o envelhecimento do corpo, não era isso um sinal de ser diferente a ordem natural das coisas, quando o coração se confrangia ante o desconforto, a sujeira e a escassez, os invernos intermináveis, as meias pegajosas, os elevadores que nunca funcionavam, a água fria, o sabão áspero, os cigarros que se desfaziam, a comida de sabor mau e estranho? Por que achar tudo isso intolerável, a menos que se tivesse uma espécie de lembrança ancestral de coisas outrora diferentes?”

“Winston observou-as enojado. E no entanto, por um momento, que poderio aterrorizante se fizera ouvir, naquele grito de centenas de gargantas! Por que não poderiam gritar dessa forma quando acontecesse algo de fato importante?
Escreveu:
Não se revoltarão enquanto não se tornarem conscientes, e não se tornarão conscientes enquanto não se revelarem.
Refletiu que a frase poderia ser quase a transposição de um dos textos básicos do Partido. O Partido proclamava, naturalmente, ter libertado os proles da servidão. Antes da Revolução eram oprimidos pelos capitalistas, tinham sido chicoteados e submetidos à fome, as mulheres forçadas a trabalhar nas minas de carvão (na verdade, as mulheres ainda trabalhavam nas minas), as crianças vendidas às fábricas com a idade de seis anos. Simultaneamente, fiel aos princípios do duplipensar, o Partido ensinara que os proles eram naturalmente inferiores, que deviam ficar em sujeição, como animais, pela aplicação de algumas regras simples. Pouquíssimo se sabia a respeito dos proles. Não era necessário saber muito. Contanto que continuassem a trabalhar e se reproduzir não tinham importância suas outras atividades. Abandonados a sim mesmo, como gado solto nas planuras argentinas, haviam regressado a um modo de vida que lhes parecia natural, uma espécie de tradição ancestral. Nasciam, cresciam nas sarjetas, iam para o trabalho aos doze, atravessavam um breve período de floração da beleza e do desejo sexual, casavam-se aos vinte, atingiam a maturidade aos trinta, e em geral morriam aos sessenta. O trabalho físico pesado, o trato da casa e dos filhos, as briguinhas com a vizinhança, o cinema, o futebol, a cerveja e, acima de tudo, o jogo, enchiam-lhe os horizontes. Mantê-los sob controle não era difícil. Alguns agentes da Polícia do Pensamento estavam sempre entre eles, soltando boatos, marcando e eliminando os poucos indivíduos julgados capazes de se tornar perigosos; mas não se tentava doutrina-los com a ideologia do Partido. Não era desejável que os proles tivessem sentimentos políticos definidos. Tudo que se lhes exigia era uma espécie de patriotismo primitivo ao qual se podia apelar sempre que fosse necessário leva-los a aceitar ações menores ou maior expediente de trabalho. E mesmo quando ficavam descontentes, como às vezes acontecia, o descontentamento não os conduzia a parte alguma porque, não tendo idéias gerais, só podiam focalizar a animosidade em ridículas reivindicações específicas. Os males maiores geralmente lhes fugiam à observação. (...) Como dizia o lema do partido: ‘Os proles e os animais são livres’.”

“Estavam falando da Loteria. A uns trinta metros de distância, Winston olhou para trás. Ainda discutiam, rosto apaixonado, febril. A Loteria, com seus enormes prêmios semanais, era o acontecimento público a que os proles davam a maior atenção. Era provável que houvesse milhões de proles para quem a Loteria era o principal, se não o único, motivo de continuar a viver. Era o seu deleite, sua loucura, seu anódino, seu estimulante intelectual. Quando se tratava de Loteria, até gente que mal sabia ler e escrever fazia intrincados cálculos e fantásticas proezas de memória. Havia um exército de homens que ganhava a vida graças à simples venda de sistemas, previsões e amuletos. Winston nada tinha a ver com a exploração da Loteria, que era administrada pelo Ministério da Fartura, mas sabia (como sabiam todos do Partido) que em grande parte os prêmios eram imaginários. Na realidade, só eram pagam pequenas quantias, sendo pessoas inexistentes os ganhadores da sorte grande.”

“Pela sua respiração pausada tornou-se evidente que ela adormecera de novo. Ele gostaria de ter continuado falando da mãe. Não supunha, pelo que ainda se lembrava dela, que tivesse sido mulher fora do comum, e muito menos inteligente; e no entanto possuíra uma espécie de nobreza, de pureza, simplesmente porque obedecia a cânones que eram seus próprios. Seus sentimentos eram dela mesma, e não podiam ser alterados pelas circunstâncias externas. Não lhe ocorreria que um ato ineficaz se tornaria, por isso mesmo, sem sentido. Quando se ama alguém, ama-se, e quando não se tem mais nada para lhe dar, ainda se lhe dá o amor. (...) O que o Partido fizera de terrível era persuadir os seus membros de que meros impulsos, meras sensações, não tinham importância, ao mesmo tempo que lhes roubava todo poder sobre o mundo material. Uma vez no jugo do Partido, o que a pessoa sentisse ou não, o que fizesse ou deixasse de fazer, literalmente não fazia diferença. Acontecesse o que acontecesse, o indivíduo sumia, e nem ele nem seus atos eram jamais mencionados. Era banido do rio da história. E no entanto, aos cidadãos de apenas duas gerações atrás, isto não teria parecido importante, porque não tentavam alterar a história. Era governados por lealdades particulares que não punham em dúvida. O que importavam eram relações individuais, e podia ter valor em si um gesto completamente irrelevante, um abraço, uma lágrima, uma palavra dita a um moribundo. De repente, ocorreu-lhe que os proles continuavam assim. Não eram leais a um partido, país ou ideologia, eram leais aos seus semelhantes. Pela primeira vez na vida não desprezou os proles nem pensou neles apenas com força inerte que um dia ganharia vida e regeneraria o mundo. Os proles tinham continuado humanos.”

“Desde que se começou a escrever a história, e provavelmente desde o fim do Período Neolítico, tem havido três classes no mundo, Alta, Média e Baixa. Têm-se subdividido de muitas maneiras, receberam inúmeros nomes diferentes, e sua relação quantitativa, assim como sua atitude em relação às outras, variavam segundo as épocas; mas nunca se alterou a estrutura essencial da sociedade. Mesmo depois de enormes comoções e transformações aparentemente irrevogáveis, o mesmo diagrama sempre se restabeleceu, da mesma forma que um giroscópio em movimento sempre volta ao equilíbrio, por mais que seja empurrado deste ou daquele lado. (...)
Os objetivos destes três grupos são inteiramente irreconciliáveis. O objetivo da Alta é ficar onde está. O da Média é trocar de lugar com a Alta. E o objetivo da Baixa, quando tem objetivo – pois é característica constante da Baixa viver tão esmagada pela monotonia do trabalho cotidiano que só intermitentemente tem consciência do que existe fora da sua vida – é abolir as distinções e criar uma sociedade em que todos sejam iguais. Assim, por toda a história, trava-se repetidamente uma luta que é a mesma em seus traços gerais. Por longos períodos a Alta parece firme no poder, porém mais cedo ou mais tarde chega um momento em que, ou perde a fé em si própria ou sua capacidade de governar com eficiência, ou ambas. É então derrubada pela Média, que atrai a Baixa ao seu lado, fingindo lutar pela liberdade e a justiça. Assim que alcança sua meta, a Média joga a Baixa na sua velha posição servil e transforma-se em Alta. Dentro em breve uma nova classe Média se separa dos outros grupos, de um dele ou de ambos, e a luta recomeça. Das três classes, só a Baixa nunca consegue nem êxito temporário na obtenção dos seus ideais. Seria exagero dizer que não se registra na história progresso material. Mesmo hoje, nesse período de declínio, o ser humano comum é fisicamente melhor do que há alguns séculos. Mas nenhum progresso em riqueza, nenhuma suavização de maneiras, nenhuma reforma ou revolução jamais aproximou um milímetro a igualdade humana. Do ponto de vista da Baixa, nenhuma modificação histórica significou mais do que uma mudança do nome dos amos.”

“O antigo tipo de socialista, treinado a lutar contra o que às vezes se chamava ‘privilégio de classe’, supunha que o que não fosse hereditário não podia ser permanente. Não percebia que a continuidade de uma oligarquia não precisava ser física, nem fazia pausa para refletir que as aristocracias hereditárias sempre tiveram vida curta, enquanto que organizações auto-renovantes como a Igreja Católica, às vezes duram centenas e mesmo milhares de anos. A essência do jugo oligárquico não é a herança de pai a filho, mas a persistência de certo ponto de vista em face do mundo e de certa maneira de viver, imposta aos vivos pelos mortos. Um grupo dominante só continua mandando enquanto consegue nomear seus sucessores. O Partido não se interessa pela perpetuação do seu sangue, mas pela perpetuação da entidade. O que importa não é quem maneja o poder, contanto que permaneça sempre a mesma estrutura hierárquica.”