segunda-feira, 16 de maio de 2011

Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago

Primeiro livro que leio dele - ops, primeiro não, já li um bem curtinho, devo ter postado no blog sobre ele, mas não lembro... Era algo tipo "Um conto de duas ilhas" ou algo do gênero.
Difícil se acostumar com o jeito com que ele escreve, mas depois da vigésima página a leitura flui bastante. O tema já me encanta por princípio, pois adoro quando se imaginam situações fictícias, onde reina o caos e a calamidade. Eu gosto de ler e imaginar como seriam as reações das pessoas que estão vivendo estas situações extremas, bem como como eu reagiria se isto viesse a ser realidade.
Deixando de lado a ficção, o modo como ele escreve é poético! Situações tão humanas são descritas por ele com tanta sensibilidade que arrepia... O que se dizer da cena em que a mulher do médico (os personagens não tem nome, o que dá um charme a mais - apesar de que pode-se ler o livro inteiro sem perceber isto) limpa, em água suja, as suas companheiras, recém chegadas do "abate"? Aliás, a sensibilidade que ele tem da alma feminina é um caso a parte - digo isso pela cena linda das mulheres se lavando na chuva, ou na cena que estão os três - médico, mulher do médico e rapariga dos óculos escuros - abraçados na cama da rapariga, chorando.
Eu digo cena porque é muito fácil imaginar cada palavra do Saramago se transpondo, emergindo do livro e ganhando formas e cores. Não que ele seja extremamente detalhista em suas descrições, mas ele consegue usar as palavras certas para que o leitor consiga ver.
Outras cenas que merecem ser lembradas são a entrada do cão das lágrimas na história e a conversa entre a mulher do médico e o escritor.
Em resumo, adorei o livro. Assim que puder vou pegar outros do Saramago para ler.
Por enquanto, vou esperando a boa vontade da Mah, do Feli, da Ana e do Profe, até que eles tomem vergonha na cara e leiam o livro, para nós podermos iniciar o nosso grupo de estudos literários. =D

*** IMPORTANTE: OS FRAGMENTOS ABAIXO PODEM CONTER SPOILERS!!! ***

“A consciência moral, que tantos insensatos tem ofendido e muito mais renegado, é coisa que existe e existiu sempre, não foi uma invenção dos filósofos do Quaternário, quando a alma mal passava ainda de um projeto confuso. Com o andar dos tempos, mais as actividades da convivência e as trocas genéticas, acabamos por meter a consciência na cor do sangue e no sal das lágrimas, e, como se tanto fosse pouco, fizemos dos olhos uma espécie de espelhos virados para dentro, com o resultado, muitas vezes, de mostrarem eles sem reserva o que estávamos tratando de negar com a boca. Acresce a isso, que é geral, a circunstância particular de que, em espíritos simples, o remorso causado por um mal feito se confunde freqüentemente com medos ancestrais de todo o tipo, donde resulta que o castigo do prevaricador acaba por ser, sem pau nem pedra, duas vezes o merecido.”

“Simplificando, pois, poder-se-ia incluir esta mulher na classe denominada prostitutas, mas a complexidade da trama das relações sociais, tanto diurnas como nocturnas, tanto verticais como horizontais, da época aqui descrita, aconselha a moderar qualquer tendência para juízos peremptórios, definitivos, balda de que, por exagero da suficiência nossa, talvez nunca consigamos livrar-nos. Ainda que seja evidente o que muito que de nuvem há em Juno, não é lícito, de todo, teimar em confundir com uma deusa grega o que não passa de uma vulgar massa de gotas de água pairando na atmosfera.”

“Provavelmente, só num mundo de cegos as coisas serão o que verdadeiramente são, (...)"

“(...), Que faço eu, se a minha maior preocupação é evitar que alguém se aperceba de que eu vejo, Alguns irão odiar-te por veres, não creia que a cegueira nos tornou melhores, Também não nos tornou piores, (...), Farás o que melhor te parecer, mas não esqueças daquilo que nós somos aqui, cegos, simplesmente cegos, cegos, sem retórica nem comiserações, o mundo caridoso e pitoresco dos ceguinhos acabou, agora é o reino duro, cruel e implacável dos cegos, Se tu pudesses ver q o que eu sou obrigada a ver, quereria estar cego, (...)”

“Folguem portanto as mulheres das camaratas da ala direita, com o mal das minhas vizinhas posso eu bem, palavras que nenhuma disse, mas que todas pensaram, na verdade ainda está para nascer o primeiro ser humano desprovido daquela segunda pele a que chamamos egoísmo, bem mais dura que a outra, que por qualquer coisa sangra.”

“(...), E agora, Agora estamos livres (...), Vai haver luta, guerra, Os cegos estão sempre em guerra, sempre estiveram em guerra, (...)”

“(...), As mulheres ressuscitam umas nas outras, as honradas ressuscitam nas putas, as putas ressuscitam nas honradas, disse a rapariga dos óculos escuros. Depois disto houve um grande silêncio, para as mulheres ficara tudo dito, os homens teriam de procurar as palavras e de antemão sabiam que não seriam capazes de encontrá-las.”

“(...), a cegueira também é isto, viver num mundo onde se tenha acabado a esperança.”

“(...), Se eu lhes falto, pensou, não lhe ocorreu que lá fora todos estavam cegos, e viviam, teria ela própria de cegar também para compreender que uma pessoa se habitua a tudo, sobretudo se já deixou de ser pessoa, (...)”

“Como está o mundo, tinha perguntado o velho da venda preta, e a mulher do médico respondeu, Não há diferença entre o fora e o dentro, entre o cá e o lá, entre os poucos e os muitos, entre o que vivemos e o que teremos de viver, E as pessoas, como vão, perguntou a rapariga dos óculos escuros, Vão como fantasmas, ser fantasma deve ser isto, ter a certeza de que a vida existe, porque quatro sentidos o dizem, e não a poder ver, (...). Ao rapazinho estrábico basta-lhe a satisfação de levar calçados os sapatos com que sempre sonhou, nem chega para o entristecer o facto de não poder vê-los. Por esta razão, provavelmente é que não vai como um fantasma.”

“A memória da rapariga dos óculos escuros tinha-a levado pelo interior da casa, como a velha do andar de baixo também não tropeçou nem duvidou, a cama dos pais estava por fazer, deviam tê-los vindos buscar de madrugada, sentou-se ali a chorar, a mulher do médico veio sentar-se ao lado dela, disse-lhe, Não chores, que outras palavras se podem dizer, as laágrimas que sentido têm quando o mundo perdeu todo o sentido.”

“(...),Quem é essa bruxa, perguntou o velho da venda preta, são coisas que se dizem quando não sabemos ter olhos para nós próprios, vivesse ele como ela tem vivido, e queríamos ver quanto lhe durariam os modos civilizados.”

“A velha do primeiro andar, ouvindo ladrar com tamanha ferocidade, temeu, mas sabemos quão demasiado tarde, pela segurança de sua despensa, e gritou esticando o pescoço para cima, Esse cão tem de estar preso, não vá matar-me aí alguma galinha, Fique descansada, respondeu a mulher do médico, o cão não tem fome, já comeu, e nós vamos-nos embora agora mesmo, Agora, repetiu a velha, e houve na sua voz um quebrantamento como de pena, era como se estivesse a querer ser entendida de um modo muito diferente, por exemplo Vão-me deixar aqui sozinha, porém não pronunciou uma palavra mais, só aquele Agora qye nem pedia resposta, os duros de coração também têm os seus desgostos, o desta mulher foi tal que depois não quis abrir a porta da casa para despedir-se dos desagradecidos a quem tinha dado passagem franca pela sua casa. (...)
A velha do primeiro andar abriu devagar a janela, não quer que se saiba que tem esta fraqueza sentimental, mas da rua não sobe nenhum ruído, já se foram, deixaram este sítio por onde quase ninguém passa, a velha deveria estar contente, desta maneira não terá de dividir com os outros as suas galinhas e os seus coelhos, deveria de estar e não está, dos olhos cegos saem-lhes duas lágrimas, pela primeira vez perguntou se tinha alguma razão para continuar a viver. Não achou resposta, as respostas não vêm sempre que são precisas, e mesmo sucede muitas vezes que ter de ficar simplesmente à espera delas é a única resposta possível.”

“(...), por favor, não me perguntem o que é o bem e o que é o mal, sabíamo-lo de cada vez que tivemos de agir no tempo em que a cegueira era uma excepção, o certo e o errado são apenas modos diferentes de entender a nossa relação com os outros, não a que temos com nós próprios, nessa não há que fiar, perdoem-me a prelecção moralística, é que vocês não sabem, não o podem saber, o que é ter olhos num mundo de cegos, não sou rainha, não, sou simplesmente a que nasceu para ver o horror, vocês sentem-no, eu sinto e vejo-o, (...), Se eu voltar a ter olhos, olharei verdadeiramente os olhos dos outros, como se estivesse a ver-lhes a alma, A alma, perguntou o velho da venda preta, Ou o espírito, o nome pouco importa, foi então que, surpreendentemente, se tivermos em conta que se trata de pessoa que não passou por estudos adiantados, a rapariga dos óculos escuros disse, Dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos.”

“(...), Que não pare, que esta chuva não pare, murmurava enquanto buscava na cozinha os sabões, os detergentes, os esfregões, tudo o que pudesse servir para limpar um pouco, ao menos um pouco, esta sujidade insuportável da alma. Do corpo, disse, como para corrigir o metafísico pensamento, depois acrescentou, É o mesmo.”

“Só Deus nos vê, disse a mulher do primeiro cego, que, apesar dos desenganos e das contrariedades, mantém firme a crença de que Deus não é cego, ao que a mulher do medico respondeu, Nem mesmo ele, o céu está tapado, só eu posso ver-vos, Estou feia, perguntou a rapariga dos óculos escuros, estás magra e suja, feia nunca o serás, E eu, perguntou a mulher do primeiro cego, Suja e magra como ela, não tão bonita, mas mais do que eu, Tu és bonita, disse a rapariga dos óculos escuros, Como pode sabê-lo se nunca me viste, Sonhei duas vezes contigo, Quando, A segunda foi esta noite, Estavas a sonhar com a casa porque te sentias segura e tranqüila, é natural, depois de tudo por que passamos, no teu sonho eu era a casa, e como, para ver-me, precisavas de pôr-me uma cara, inventaste-a, Eu também te vejo bonita, e nunca sonhei contigo, disse a mulher do primeiro cego, O que só vem demostrar que a cegueira é a providência dos feios, Tu não és feia, Não, de facto não sou, mas a idade, Quantos anos tem, perguntou a rapariga dos óculos escuros, Vou-me chegando aos cinqüenta, Como a minha mãe, E ela, Ela, quê, Continua a ser bonita, Já foi mais, É o que acontece a todos nós, sempre fomos mais alguma vez, Tu nunca foste tanto, disse a mulher do primeiro cego.”

“(...), É um velho costume da humanidade, esse de passar ao lado dos mortos e não os ver, disse a mulher do médico.”

“Ressurgirá, perguntou a rapariga dos óculos escuros, Ela, não, respondeu a mulher do médico, mais necessidade teriam os que estão vivos de ressurgir de si mesmos, e não o fazem, Já estamos meio mortos, disse o médico, Ainda estamos meio vivos, respondeu a mulher.”

“(...), Por que foi que cegamos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem.”