terça-feira, 27 de outubro de 2009

A Lentidão, de Milan Kundera

“... o homem curvado em sua motocicleta só pode se concentrar naquele exato momento de seu vôo; agarra-se a um fragmento retirado tanto do passado quanto do futuro; é arrancado da continuidade do tempo; está fora do tempo; em outras palavras, está num estado de êxtase; em tal estado, não sabe de sua idade, nada de sua mulher, nada de seus filhos, nada de suas preocupações e, portanto, não tem medo, pois a fonte do medo está no futuro e quem se liberta do futuro nada tem a temer.
A velocidade é a forma de êxtase que a revolução técnica deu de presente ao homem. Ao contrário do motociclista, quem corre a pé está sempre presente em seu corpo, forçado a pensar sempre em suas bolhas, em seu fôlego; quando corre, sente seu peso, sua idade, consciente mais do que nunca de si mesmo e do tempo de sua vida. Tudo muda quando o homem delega a uma máquina a faculdade de ser veloz: a partir de então, seu próprio corpo fica fora do jogo e ele se entrega a uma velocidade que é incorpórea, imaterial, velocidade pura, velocidade em si mesma, velocidade êxtase.”

“...Pontevin é um dos grandes discípulos de Epicuro: inventa e desenvolve suas idéias apenas porque isso lhe dá prazer. Não despreza a humanidade, que é para ele uma fonte inesgotável de reflexões alegremente maliciosas, mas não sente a menor vontade de entrar em contato mais estreito com ela. Está cercado por um grupo de amigos que se encontram no Café gascão, e essa pequena amostra da humanidade já lhe basta.”

“...pois (e é uma outra definição elementar bem conhecida na matemática existencial) cada possibilidade nova que tem existência, até a menos provável, transforma a existência inteira.”

“Ser eleito é uma noção teológica que quer dizer: sem mérito nenhum, por um veredicto sobrenatural, por uma vontade livre, senão caprichosa, de Deus, se é escolhido para alguma coisa de excepcional e de extraordinário. Com essa convicção, os santos encontraram a força para suportar os mais atrozes suplícios. As noções teológicas refletem-se, assim como suas próprias paródias, na trivialidade de nossas vidas; cada um de nós sofre (mais ou menos) da insignificância de sua vida muito comum e deseja escapar dela e elevar-se. Cada um de nós conheceu a ilusão (mais ou menos forte) de ser digno dessa elevação, de ser predestinado e escolhido por ela.
O sentimento de ser eleito está presente, por exemplo, em toda relação amorosa. Pois o amor, por definição, é um presente não merecido; ser amado sem mérito é até mesmo uma prova de um verdadeiro amor. Se uma mulher me diz: amo você porque você é inteligente, porque é honesto, porque me compra presentes, porque não anda atrás das outras, porque lava a louça, fico decepcionado; esse amor me parece interesseiro. Como é mais bonito ouvir: sou louca por você apesar de você não ser nem inteligente, nem honesto, apesar de você ser mentiroso, egoísta, ordinário.”

“Quando as coisas acontecem rápido demais, ninguém pode ter certeza de nada, de coisa nenhuma, nem de si mesmo.
Quando evoquei a noite de Madame de T., lembrei a equação bem conhecida de um dos primeiros capítulos do manual da matemática existencial: o grau de velocidade é diretamente proporcional à intensidade do esquecimento. Dessa equação, podemos deduzir diversos corolários, este, por exemplo: nossa época se entrega ao demônio da velocidade e é por essa razão que se esquece tão facilmente de si mesma. Ou prefiro inverter essa afirmação e dizer: nossa época está obcecada pelo desejo do esquecimento e é para saciar esse desejo que se entrega ao demônio da velocidade; acelera o passo porque quer nos fazer compreender que não deseja mais ser lembrada; que está cansada de si mesma; enjoada de si mesma; que quer soprar a pequena chama trêmula da memória.”