sábado, 30 de janeiro de 2010

Fragmento esquecido de Sidarta

“Por muito tempo ainda, a ferida continuou a arder. Cabia a Sidarta transportar através do rio numeroso viajantes acompanhados de filhos ou filhas e cada vez que os observava, deva-se conta de que tinha inveja deles, de que dizia de si para si: ‘Tanta gente, tantos milhares de pessoas gozam dessa felicidade, da mais doce de todas, e eu não! Por quê? Até os homens mais maldosos, até os ladrões e os salteadores tem filhos. Amam-nos e são amados por eles. Unicamente eu não recebi o meu quinhão!’ Tais eram as reflexões ingênuas, insensatas que nessas horas lhe passavam pela cabeça. A tal ponto assemelhara-se aos homens tolos.
Era de modo diferente do de outrora que a essa altura pensava a respeito das criaturas humanas. Havia nos seus julgamentos menos intelecto, menos orgulho, mas, em compensação, mais calor, mais curiosidade, mais simpatia. Quando conduzia passageiros ordinários, homens tolos, negociantes, guerreiros, mulherio, esses seres já não lhe afiguravam estranhos. Ele os compreendia. Compreendia a sua existência jamais orientada por raciocínios e percepções, senão exclusivamente por instintos e desejos. Tomava parte dela. Sentia-se igual a eles. Ainda que tivesse chegado bem perto da perfeição e padecesse as dores da derradeira das suas feridas, tinha a impressão de que aqueles homens tolos eram seus irmãos. A vaidade, a cupidez, o ridículo que os dominavam perdiam para ele a sua comicidade, encontravam explicação, tornavam-nos até mesmo dignos de respeito. O amor cego que uma mãe tributasse ao filho; o orgulho estúpido, obcecado, de que um pai presunçoso se enchesse em face do filhinho único; o desejo desvairado, furioso de possuir jóias, de ser admirada pelos homens, tal como experimenta uma mocinha garrida – todos esses instintos, todas essas infantilidades, ambições e ânsias, impulsos simples, irracionais, porém invencíveis na sua desmedida força e na sua pujante vitalidade, cessavam de apresentar-se aos olhos de Sidarta como meras criancices. Chegava ele a entender que os seres humanos viviam em função dessas coisas e que justamente elas os capacitavam para proezas incríveis, permitindo-lhes fazer guerras, empreender viagens, suportar tudo e resistir a sofrimentos sem fim. (...) Aquela gente, com sua lealdade cega, com seu vigor e sua tenacidade, merecia carinho e admiração. Nada lhe faltava. O sábio, o filósofo superava-a apenas num único e minúsculo pontinho, numa só coisinha de nada; a saber, a consciência que ele obtivera a unidade de toda a vida. E mesmo assim houve momentos em que o próprio Sidarta duvidara do alto valor de tal sabedoria ou idéia e ventilasse a possibilidade de também ela não passar de uma infantilidade peculiar de homens-pensadores ou de criançolas pensantes. Em todos os demais assuntos, os homens comuns igualavam-se aos sábios e, freqüentemente, lhes eram bastante superiores, assim como os animais, na sua realização persistente, imperturbável, de tudo quanto for necessário, às vezes parecem capazes de ultrapassar os homens. ”

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