quarta-feira, 30 de julho de 2008

O homenzinho do narigão verde

"Ela pediu o menu mais simples e notou um boneco colocado no meio da mesa. Era um homenzinho de borracha, um boneco de propaganda. O homenzinho tinha o corpo grande, as pernas curtas e um nariz verde monstruoso que lhe descia até o umbigo. (...)
Imaginou que se dava vida ao homenzinho. Uma vez dotado de alma, sem dúvida ele sentiria uma viva dor se alguém, como Agnes fazia naquele momento, se divertisse em torcer seu nariz verde e emborrachado. Logo nasceria nele o medo dos homens, pois todo mundo iria apertar esse nariz ridículo, e a vida do homenzinho não seria senão medo e sofrimento.
(...) Um dia, alguém lhe estenderia um espelho e desde então iria desejar esconder seu rosto entre as mãos, porque sentiria uma terrível vergonha diante das pessoas. (...)
Agnes pensava: é curioso imaginar que o homenzinho sentiria vergonha? Será ele responsável por seu nariz verde? Ao contrário, não levantaria os ombros com indiferença? Não, não levantaria os ombros. Teria vergonha. Quando o homem descobre pela primeira vez seu físico, não é nem indiferença nem raiva que sente em primeiro lugar e com maior intensidade, mas a vergonha, uma vergonha fundamental que, com altos e baixos, mesmo atenuada pelo tempo, o acompanhará a vida inteira.
(...) A vergonha não tem por fundamento um erro que cometemos, mas a humilhação que sentimos em ser o que somos sem o termos escolhido, e a sensação insuportável de que essa humilhação é evidente para todos.
Nada de espantoso se o homenzinho de narigão verde tem vergonha de seu rosto. Mas então o que dizer do pai de Agnes? Ele era bonito!
Sim, era. Mas o que é a beleza do ponto de vista matemático? Existe a beleza quando um exemplar é tão semelhante quanto possível ao protótipo original. Imaginemos que tenhamos posto no computador as dimensões mínimas e máximas de todas as partes do corpo: entre três e sete centímetros de comprimento o nariz, entre três e oito de altura de testa, e assim por diante. É feio o homem cuja testa mede seis centímetros e o nariz apenas três. Feiúra: caprichosa poesia do acaso. Num homem bonito, o jogo dos acasos escolheu uma média de todas as medidas. Beleza: prosaismo da média exata. Na beleza, mais ainda que na feiúra, manisfesta-se o caráter não-individual, não-pessoal do rosto. Em seu rosto, o homem bonito vê o projeto técnico original, tal qual o desenhou o autor do protótipo, e ele tem dificuldade em acreditar que aquilo que vê seja inimitável. De modo que sente vergonha, exatamente como o homenzinho do nariz verde.
Quando seu pai estava agonizante, Agnes ficou sentada ao lado da cama. Antes de entrar na fase final da agonia ele lhe disse:
- Não me olhe mais, e foram as últimas palavras que ouviu dele, sua última mensagem.
Ela obedeceu; inclinando a cabeça para o chão, fechando os olhos, só segurou sua mão e apertou-a; deixou que partisse, lentamente e sem ser visto, para o mundo onde não existem rostos."

(Fragmento de A Imortalidade)

Nenhum comentário: